1952

Quando eu era pequena, muito pequena mesmo, nas noites tranquilas de Campina Grande eu sentava junto de papai enquanto ele lia o Diário de Pernambuco e ia me ensinando as letras. Foi a primeira coisa que aprendi a ler, as primeiras palavras da minha vida que decifrei: Diário de Pernambuco. E, quase sem meus pais perceberem, aos três anos e pouco, eu lia tudo. Sei que não tinha quatro anos ainda porque quando fui para a escola de Dona Madalena, na mesma rua, seis ou sete casas acima da nossa, do mesmo lado, no início de 1952, aos quatro anos, eu já sabia ler qualquer coisa que pusessem na minha frente.

Mamãe fez para mim uma farda escolar, inspirada nas capas dos cadernos que eram comuns naquela época, e que se compunha de uma saia de pregas de tecido azul com suspensórios sobre uma blusa branca, de mangas curtas e gola em ponta. Nos pés, alpercatas escuras. Compraram-me uma pasta para a Cartilha, a tabuada, e o caderno, além do lápis com a borracha enfiada na ponta, e uma sacola de tecido onde levava o lanche que era sempre um pão francês ora com goiabada, ora com ovo frito. E assim ataviada e apetrechada, logo que Papai saía depois do almoço eu ia para a escola, deixando minha mãe em paz para que pudesse dar seu cochilo da tarde.

Morávamos então na rua Alexandrino Cavalcanti, os “Paus Grandes”, como era conhecido o logradouro nos tempos antigos. Hoje a rua se chama João Alves de Oliveira, e a gente morava quase no cruzamento com a rua João Leôncio. A casa foi demolida para alargamento do cruzamento.

A escola de Dona Madalena, situada no lado direito de quem desce, logo antes do cruzamento, era uma escola típica daquela época. Em torno de uma mesa comprida, colocada no terraço dos fundos da casa da mestra, agrupavam-se cerca de dez ou doze crianças de diferentes idades, às quais ela simultaneamente ensinava e tomava a lição, cada uma das crianças estudando um conteúdo diferente. Uma no quarto ano, estudando no livro de História do Brasil para ser argüida logo depois, outra resolvendo um problema de matemática do terceiro ano, e a professora fazendo um ditado para as pequenas do primeiro ano que estavam aprendendo a escrever, como era o meu caso, com uma pequena diferença: eu era a menor, só tinha quatro anos, enquanto as outras tinham seis ou sete. A varanda era agradável, cheia de plantas e aberta sobre o quintal, também com muitas plantas, uma lavanderia onde às vezes alguém lavava a roupa que era estendida em arames e ao fundo o chiqueiro onde os porcos enormes e enlameados roncavam e fuçavam a lama. Vez por outra, um dos animais se libertava e arremetia sobre a mesa de aula, provocando uma debandada geral dos alunos e a minha rápida subida para cima da mesa, pisando livros e cadernos, apavorada com medo dos porcos.

A professora era aí dos seus vinte e cinco anos, metida em vestido estampado de mangas três quartos, muito composta e espigada, volta de ouro no pescoço, brincos nas orelhas e óculos. Era paciente comigo, mas logo surgiu um problema que ela comunicou a Mamãe: A menina não sabe soletrar. Ela sabe ler, disse Mamãe. Sabe, disse a professora. Mas não sabe soletrar. Isso porque a cartilha, que era a de Tomaz Galhardo, tinha frases assim:

vo-vó viu a a-ve

a a-ve vi-ve e vô-a

eu vi a vi-ú-va

vi-va a vo-vó

vo-vô vê o o-vo

a a-ve vo-a-va

Então eu ia lá e, ignorando os tracinhos, que eu não sabia para que serviam, lia: Vovó viu a ave, a ave vive e voa, eu vi a viúva, viva a vovó, vovô vê o ovo, a ave voava. Parava, e olhava para a turma que, pasma, olhava para mim, sem entender porque eu não lia como todo mundo, soletrando: vê-ó-vó-vê-ó-vó, vovó, vê-i-u-viu, viu, a, a-vê-é-vé, ave. Então combinaram Mamãe e a professora que ela me ensinaria a escrever, ensinaria os números e deixaria eu ler do jeito que quisesse.

Na escola, então, eu logo li a cartilha inteira e como os livros dos outros alunos ficassem espalhados sobre a mesa e a professora não me prestasse muita atenção, eu pegava um ou outro e ia olhando as figuras e lendo trechos ao acaso. Logo aprendi a escrever, com uma letra muito regular e caprichada – que ainda tenho.

E assim vou me lembrando.

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